terça-feira, 2 de setembro de 2008

Quando o sapato aperta





Quando o sapato aperta
Texto de Helena Soares

Concreto rachado para buracos sabe lá aonde com águas sujas vão com ratos e baratas flutuantes. Quem anda pelas ruas pisa em odores.
Enormemente empinadas para comprar no mercado central onde o preço basta atravessar a rua para ser de povo ou de gente e gente sendo todos com fome que não escolhe estômago.
Explícito orgulho de ser e gastar até o que não tem para se gabar.
Nesta cidade ando de lá e de cá, pessoas que encontro de lá não encontro de cá, uma ou outra, especialmente os mendigos, os ladrões, os cafetões, os malandros, os loucos, livres em transitar por cima dos buracos que estão em todas as partes da cidade.
Quando é de tarde vai dando uma agonia de viver sob pedra e barulho com fedores e pessoas que usam perfumes conforme são, os mais baratos quando passa minutos já fedem junto a outros que passam sem perfume , com suor de ontem, meses, anos sem tomar banho.
A maioria de loucos que fala sozinho andando na rua é gente normal bem vestida, não estão na estatística, andam rápido com olhos fixos gesticulando mãos e boca que às vezes até dá para ouvir o que fala. Coisas que não se tem coragem de falar diretamente ou que gostariam de ouvir.

- Olha bem para mim, esta é a ultima vez que me vê com esses olhos famintos de carne sangrando, nunca mais você põe as mãos em mim, sou uma nova mulher, vou andar bem arrumada, cheirosa, se você der bobeira comigo até homem vou arrumar, quero ver você sair na rua e te chamarem de chifrudo, você vai ver se é bom. Chamam-me gostosa na rua sabia? Quero me separar, pronto falei, vou virar puta chique, melhor que ficar levando porrada. Que alívio! Não quero mais esse canalha.
Gente que dá gargalhada, gente de cara fechada, gente de nariz empinado, gente de olhar vazio e carros com seus vidros escuros acelerando no sinal para ganhar tempo.
No lavar de copos, com bocas lanchando e pouco tempo para conversa é preciso desabafar.

- Não tenho mãe, um café e dois pães de queijo? nem pai, morreu
Fui criada de qualquer jeito, um suco de acerola com laranja pro moço aqui, meu pai não quis a gente, ele vive por aí, nem sei onde anda.
- Não entendi. O pai morreu e vive por aí.Todo dia ela conta a mesma estória, tenho que lavar copo, atender cliente, pois não senhora? Só um cafezinho?
- É vivo, mas nunca quis saber de nós, Seis pastéis. Demora não, ta fritando.
É mesmo que ta morto, sumiu. Minha mãe sofreu até morrer. Com açúcar ou adoçante? Não gosto nem de lembrar. Pastel saindo, vai tomar alguma coisa?
- Tem vontade de ver ele não?
- Vou lá em cima buscar a torta de frango, já assou.

Quase escuro e noite adentro para trabalhar, muitas conversas,
pele cansada de frituras e desilusões, vida tocada para pingo de emoções.
Aqui no meio desta conversa bandos descalços invadem bolsas com olhares e pedidos de dinheiro, pombos voam mansos para disfarce de olhos que sonham debruço em copo de café, mirando longe a rua em trânsito infernal.
É a capital.
Estes despatriados percorrem quilômetros, enxergam milhões de caras que nem os olha.
Corações continuam batendo o ritmo da ameaça.
Quando é noite no mesmo horário, um velho gordo com muitas sacolas descansa seus pensamentos na praça.
Primeiro estende um plástico transparente, assenta em cima, vai tirando de dentro das sacolas coisas de comer e beber, sobre ele o céu vai crescendo, quando come e bebe, deita de barriga para cima e começa contar estrelas, sua mão direita movimenta como se contasse dinheiro, brota-lhe um sorriso no rosto.
Ele puxa um molambo de cobertor e vai se enfiando para dentro do casulo.
Logo ali perto debaixo de árvores, outros movimentos suspeitos de homens e fumaças onde ninguém ousa passar depois das vinte horas.
É certo começar outras agonias onde os donos tomam conta destes pontos que fizeram seus para ter algo de concreto.

Neste momento apartamentos guardam em jaulas seus problemas irresolvíveis de insônias para pagar contas, obedecer a patrões, andar de ônibus.

Pesadelos flutuam, fumaças saltam janelas sem medo de abismos, tomam rumo para o alto, onde sem ter estrelas que olhar, perdem-se.
Sapatos descansam esta noite de lua branca, novos, velhos, caros, baratos,
São do mesmo sangue, solidarizam - se na caminhada dos dias.
Muita sola que gastar, pés que apertar, festas para animar.
Sem sonhos para delirar, dormem em qualquer lugar para no outro dia recomeçar.